sábado, 9 de fevereiro de 2008

Aos Românticos Conspiradores


Mais de dois anos já decorreram sobre a publicação do artigo que reproduzo abaixo. Nesse hiato, conheci muitos mais projectos, muitos mais lugares onde acontece mudança. Estou a escassos dias de partir para lugares onde me esperam educadores que reinventam o Brasil, e tenho a certeza de que muitos outros virei a conhecer em futuras viagens. Serão tantos, que chegará o momento em que não poderei acompanhá-los como eles merecem.
Desde 2001, encetei uma longa “corrida” pelo Brasil das escolas. Foi-me dado a conhecer o que de melhor este país tem. Agora, consciente de que são os brasileiros que irão refazer o Brasil (e não um estrangeiro), creio ter chegado o tempo de preparar a minha retirada. Mas, antes, para que não se percam no anonimato as maravilhosas descobertas, pretendo ajudar a criar uma rede de cooperação entre educadores e projectos, que possa constituir-se em suporte documental e de comunicação. Também gostaria de ver organizados “núcleos de reflexão” (“rodas de conversa”, “círculos de estudo”, o que lhes queiram chamar...).
A ideia não é nova, a intenção talvez seja. Apercebi-me de que, no Brasil, os bons projectos se ignoram mutuamente. A Cleusa desenvolve o seu projecto numa cidade distante 4000 quilómetros da cidade onde a Regina produz inovações. Os seus projectos são idênticos, mas elas nunca conversaram. A Ana (de São Paulo) nunca ouviu falar do Cláudio (de Curitiba), embora trabalhem em estados contíguos. A Caroline desconhece o projecto da Patrícia e ambas são mineiras. A Andréa e o André moram na mesma cidade e nunca se encontraram...
Envio esta mensagem a todas as pessoas que ajudam a manter e melhorar projectos em que eu acredito, para tentar assegurar trocas entre projectos e garantir-lhes perenidade. O que aconteceria neste país, se os ignorados virassem parceiros? E, se depois de juntos, se dessem a conhecer a outros?
A proposta é dupla e simples:
Criar “núcleos” em bairros, cidades, ou regiões – para apoio a projectos locais;
Criar um rede de colaboração na internet – para partilha de experiências e de conhecimento.
Não ouso sugerir o modo de fazer, nem o quando. Creio já ter falado demais...
Como escreveu a minha amiga Cláudia, são necessários “avanços para a educação brasileira, no sentido de transitarmos da condição atual, de termos meramente escolas estatais, para a condição de construirmos escolas públicas, que dialoguem em rede e, gradativamente, possam integrar um sistema educacional”. Por isso, não proponho a formação de grupos de estudo sobre a Escola da Ponte, mas o debate em torno de princípios e da realidade brasileira. Não para melhorar o modelo tradicional de Escola Pública (de iniciativa estatal ou particular), que já não funciona, mas para operar rupturas. Rupturas bem pensadas e bem avaliadas – para grandes metas, pequenos passos...
Para facilitar os contactos, ouso referir alguns endereços de pessoas, que acredito quererem melhorar-se, para melhorar a Educação do Brasil. Certamente, faltarão muitos nomes nesta lista. Não consegui encontrar os seus e-mail. Mas cada “convidado” poderá convidar... Seja bem vindo quem vier por bem.
Acaso algum dos “núcleos” formados pretenda promover um encontro em que eu esteja presente, poderei disponibilizar um tempo para tal. Ficarei na expectativa. E disponível para, como “amigo crítico”, discretamente partilhar aquilo que vier a tomar forma.
O convite está lançado. Quem quer participar? Quem quer organizar?
Não sei se para vós este convite fará sentido. Para mim, faz todo o sentido. Ficarei aguardando as adesões, as observações, os conselhos, as contestações...

Abraço fraterno.

José Pacheco


As escolas invisíveis
(José Pacheco, Folha de São Paulo, Novembro de 2005)

Perguntam os meus patrícios por que razão eu viajo tanto para o Brasil. E eu explico. Se comparadas ao Brasil, as escolas europeias dispõem de melhores recursos. Porém, acumulam-se as teses sobre o mal-estar docente, sem que se vislumbre a cura para a maleita dos professores. As escolas do "primeiro mundo" converteram-se ao digital, mas mantêm e reforçam práticas de ensino obsoletas. Os excelentes profissionais que elas albergam possuem saberes suficientes para romper o círculo vicioso do insucesso, mas o insucesso mantém-se e prospera. As escolas portuguesas têm meios para se afirmarem como espaços de democratização, mas estão acomodadas, cínicas.
Sem dualismos maniqueístas, é preciso afirmar que há, no Brasil, muitos professores que dão sentido às suas vidas, dando sentido à vida das crianças e das escolas. Sinto-me um privilegiado por, após três décadas de trabalho numa escola que ousou provar que a utopia é realizável, encontrar no Brasil tanta generosidade e responsável ousadia.
Em cada viagem, junto mais uma ou duas novas escolas ao já extenso rol. No extremo norte do país, um colégio busca a forma ideal de escola que dê a todos garantia do exercício da cidadania e de realização pessoal. Num hospital do sul, uma equipa de professores, técnicos de serviço social, animadores e voluntários suavizam os dias de crianças doentes. Num lugarejo perdido do Nordeste, a fé pedagógica faz milagres e produz um ensino que faria inveja de muito colégio (dito) de elite. Junto ao mar de Santa Catarina, crescem as paredes de uma escola sem paredes, que concretizará o sonho de um pequeno grupo de educadores. Em São Paulo, por detrás de um pesado portão protector, um jardim-de-infância feito à medida da criança comove o visitante mais insensível. Na periferia da grande metrópole, professores e pais juntam-se a amigos e pesquisadores, para dar forma a um projecto que transformou “salas de aula” em “espaços de estudo”. Numa escola do Rio, os sonhos de uma escola à medida do Homem ganham forma, fazendo das crianças pessoas mais sábias e mais felizes. Sob o "mar de Minas", uma mulher empenha-se na humanização de uma academia de polícia. Na Bahia, um homem bom reinventou modos de ensinar e aprender e um grupo de voluntários leva esperança a uma escola no interior de uma favela. Perto do lugar onde Cora viveu, a tenda de circo e a ágora resgatam a vocação da escola. Em pleno centro da capital, a diversidade cultural assume contornos reais, uma fundação procura respostas para os “diferentes”, e uma ONG suporta a humanização do sistema de relações numa escola antes condenada à desactivação.
Durante o período negro dos governos de militares, muitos projectos pereceram. Mas uma nova geração de educadores emerge. Uma ruptura paradigmática se anuncia. As escolas invisíveis não prescindem de um património comum e são alheias a modas pedagógicas. Assistiram à ascensão e à queda do modismo construtivista, e foram imunes ao fenómeno. Não fossilizaram Vigotsky e Piaget. Adoptaram-nos, adaptando-os, contextualizando-os. As escolas invisíveis recuperam uma tradição esquecida. Redescobriram Anísio Teixeira, que, nos anos 30, defendia a necessidade de mudar a escola, para que esta se tornasse um instrumento de mudança social. Reencontraram Lauro Lima, que, na década de 60, fez a reinterpretação brasileira do pensamento de Piaget. Recuperaram os contributos de Paulo Freire.
Apetece perguntar: por que razão os professores das escolas brasileiras não estudam devidamente estes e outros autores? Talvez porque nos centros de decisão e nos lugares onde, supostamente, se produz ciência, abundem teóricos redundantes. Já li disparates escritos sob a forma de trabalho científico. Se alguns teóricos adoptaram Dewey, outros rotularam o Anísio de “liberal conservador”. Os teóricos redundantes, especialmente especializados em citações de citações, enfeitam as suas teses com “construtivismos” e quejandos, sem que façam a mínima ideia da realidade que subjaz às citações. Os teóricos redundantes são uma praga na formação de professores. Não geram conhecimento, apenas especulações que se refutam mutuamente e não fertilizam as práticas. As escolas invisíveis agem à margem dessas bizantinas criaturas e da sua despicienda labuta teórica, sem que fiquem cativas de um praticismo inconsequente feito de rotina e caprichos.
É sabido que um dos obstáculos à mudança nas escolas radica no predomínio de uma cultura pessoal e profissional dos professores, que os convida à acomodação. Mas importa acrescentar o que vem sendo escamoteado: quer essa cultura é reforçada pela formação de professores que ainda se vai fazendo...
O modo como os professores aprendem é o mesmo com que ensinam. Este inevitável isomorfismo da formação mostra-se fatal para as aspirações dos governantes a novas e melhores práticas escolares. Se os professores são formados em métodos passivos, poder-se-á esperar que desenvolvam métodos activos com os seus alunos? Mutatis, mutandis: se foram formatados numa inútil acumulação cognitiva, irão adoptar o modelo transmissivo.
“A mente apavora o que ainda não é mesmo velho” e, em muitas instituições de formação, existe algo comparável a uma conspiração de silêncio. Em quantas instituições de formação de professores se fala, por exemplo, de Ferrer e da tradição libertária em Educação? Quantos formadores de professores ousam mencionar Feyerabend e assumir o princípio que nos diz ser a poesia um meio de explorar a realidade, ou o Freud que nos diz que só se aprende algo por amor a alguém? Quantos assumirão que a “flecha do tempo” (Prigogine & Stengers) é, também, referência na relação educativa, ou que toda a inovação comporta a intervenção do acaso? Muitos autores foram banidos dos manuais. E não são poucas as universidades que sofrem dessa amnésia, que não se libertaram de um conceito clássico de ciência, e reproduzem fundamentalismos pedagógicos estéreis. Porém, apesar da escola de formação (e contra a escola de formação), os professores das “escolas invisíveis” rompem com o fatalismo da reprodução do insucesso e da exclusão.
Assim como certas correntes de pensamento, teorias e pedagogos permanecem invisíveis, também são invisíveis certas escolas. Mas estas por uma boa razão, porque a visibilidade social volta-se contra os projectos de mudança reflectida que essas escolas empreenderam. Há escolas onde a reelaboração cultural acontece e as concepções e práticas educacionais evoluem... discretamente.
Poderão pensar os mais cépticos que se trata de um devaneio. Pois que continuem a pensar. O Brasil desconhece o que tem de melhor. Uma reforma silenciosa, marginal às tentativas oficiais de reforma, está acontecendo por aí, num tempo de transição entre a História e o advento da Era do Espírito. Os professores que as habitam não recebem reconhecimento público. Por vezes, recebem injustiça, mas dão lições de resiliência. Esses professores são mal remunerados, mas não usam o baixo salário como álibi para a inacção. Constróem uma escola para todos com garantia de excelência académica. Não auferem de benefícios, nem aspiram à celebridade. Coleccionam dificuldades e incompreensões. Fazem milagres com os recursos de que dispõem, que o Brasil não é pobre em recursos humanos. O Brasil desperdiça recursos. Os educadores anónimos que habitam as escolas invisíveis tecem uma rede de fraternidade. São fonte de esperança, num Brasil condenado a acreditar que, pela Educação, há-de chegar ao exercício de uma cidadania plena.
(originariamente postado em 07/02/2008)

9 comentários:

Anônimo disse...

Querido amigo,

A sua idéia é ótima. Estava mesmo na hora de juntarmos as peças desse movimento silencioso que tão generosamente você tem mobilizado pelo Brasil. Fico feliz, porque não há ninguém mais legitimado do que o amigo para provocar esse diálogo afetivo e político-pedagógico, evitando a dispersão de tantas pessoas comprometidas com a educação.

Aproveito para dizer aos colegas que discutir projetos edificantes, em prol da educação brasileira, tem sido objeto das minhas reflexões e atividades diárias, atuando numa escola da rede oficial do Estado do Rio Grande do Norte e através da ONG Instituto de Desenvolvimento da Educação (IDE). Tenho tido oportunidades valiosas de conversar com educadores (as), atendendo convites de escolas, secretarias de educação e diferentes organizações. Na verdade são espaços em que conspiramos e isso tem sido fantástico. A pequisa que realizei na Escola da Ponte para a minha tese de doutoramento oxigenou esse processo, mas, realmente, o que faz mais sentido para mim é contribuir para a construção efetiva de um escola pública de qualidade. Interessa-me os princípios, valores, reconhecendo o quanto o "Fazer a Ponte"é inspirador. Gosto da idéia do Pacheco e agora vou me dedicar, em Natal e no RN, ao projeto de apresentar algumas pessoas umas as outras e animá-las para que apresentem tantas outras tocadas pelo nosso ideal.

Por e-mail (lista de discussão), MSN e Skype penso que podemos conspirar entre grupos de diferentes cidades e Estados. Um site com a mesma finalidade poderá ser bastante útil. A Carla Lam (São Paulo/SP) havia pensando num site e até chegou a colocá-lo no ar em caráter experimental. Estou pensando em algumas idéias e vou gostar de saber o que vocês estão a pensar.

Pacheco, a minha ida a Brasília será adiada para março. Devo ir a João Pessoa para encontrá-lo no dia 14/02 e já conversei com a Laura sobre essa nova possibilidade. Aliás, por ocasião das minhas viagens, coloco-me a disposição para conversar com os colegas dos estados por onde eu passar. Quem vier a Natal, avise-me para recebermos, ok? Mais adiante, em algum lugar do Brasil podemos agendar um encontro de todos (as). Por enquanto idéias, idéias...

Abraços para todos (as).

Cláudia Santa Rosa
Natal/RN

Anônimo disse...

Quem nunca ouviu ou viu e respirou de modo anormal o nosso querido Pacheco recitando esses versos ?

Deixo-vos as palavras dele através das palavras do poeta



Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

In Movimento Perpétuo, 1956

tainamie disse...

Que bons ventos, que fazem girar mil cataventos coloridos nas mãos de tantos outros mil sonhadores. Sorriso de criança, olhar sábio de um velhinho eremita, nariz de mulher!!!! Gostei muito do blog, da idéia do site, e tb acho muito importante o grupo de emails, pois torna ágil e democrática a comunicação. Mas faremos um pacto de só mandar assuntos referentes ao nosso tema, né! Sou a Tainá Miê, trabalho numa pequena vila chamada Aldeia Velha, com a Escola da Mata Atlântica e em Paraty, na Reserva da Juatinga com os caiçaras resistentes! Mas depois conto mais, um abraço apertado à todos! E mãos à obra!

jullyana ethos disse...

Maravilhoso este texto!

jullyana ethos disse...

Maravilhosso este texto!

margareth disse...

Querido amigo
Mais uma vez... só posso dizer que você é o mestre dos mestre. Estou bastante animada,e doida para fazer novos amigos,pois se são seus amigos já estão morando no meu coração.
OBRIGADA Margareth,RJ

André disse...

Estamos nos unindo por um ideal elevado. Não vai ser fácil, mas conseguiremos preencher as brechas dos sistemazinhos dos homens. Esta rede que está se formando deverá trazer bons frutos para a educação brasileira.
A era do espírito(por que não?) se anuncia... Esperemos e lutemos por dias melhores!
Um grande abraço.
André Parente
Professor-RJ.

Anônimo disse...

Querido Pacheco,

Acredito muito em Conspirar Educação.
O momento Educacional nos convoca a transformar queixas em responsabilidades, melodias
"riscadas" em úsicas harmoniosas. O tempo é agora, não há mais tempo a perder.
A única certezaque tenho hoje - a de que amanhã posso não estar aqui, então , a hora de unirmos os diversos instrumentos da e para educação é Hoje, enquanto há um Maestro disposto a nos questionar, provocar e este Maestro é você Pacheco. Conte comigo!
As idéias isoladas invisíveis precisam se tornar ações visíveis.
Com carinho. Jane Patrícia

maria gloss disse...

Meu querido :)
Que delícia sentir ventos novos soprando e trazendo para perto os que são próximos!
Que bom saber de gente que, como diz Almada ,"não sabe sonhar senão a vida e não sabe viver senão o sonho".
Agradeço o teu sonho, a iniciativa, o convite.

Façamos as coisas boas da/na vida acontecerem!

Grande e esperançoso abraço.

Maria Gloss